quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Hipnose


Eu queria ter palavras para descrever a força expressiva do seu rosto. As linhas faciais que me desalinham a alma. Mas talvez seja apenas mais um dos meus fracassos. Mais um texto para colecionar na imperfeição. Mais uma tentativa frustrada por saber que muitas belezas só precisam do encantamento para ganhar sentido, nada além. Mas eu me atrevo, escrevo, e ao mesmo tempo me pergunto: como encaixar nas palavras algo tão único, intransferível, surreal? Ah, eu preciso tentar – tentar explicar.

A sua face é desenho de uma tarde amena sustentando uma paisagem inteira de paz. Com uma moldura mi-li-me-tri-ca-men-te exata dos seus traços. Trabalho singelo feito o formato da sua boca, baú do sorriso. Seu sorriso? Ah, ele é um sol, também desenhado, que se abre atrás das nuvens espessas. Estrela maior que arde em minha pele vermelha (amor?), mas não queima. Você é um conjunto de coloridas nuanças na ponta do pincel que harmoniza o próprio desenho. Uma paisagem rabiscada muito diferente da real. Mimese que não quer imitar. Aquarela, degradê em cores quentes. Passatempo de criança estes rabiscos e você no meio deles, formando-se. Ingênuo. Despretensioso. 

Seus dentes, filhos do seu sorriso, me mordem sem machucar, me repartem para você não partir. Jamais.

Mas dizem que a memória olfativa é a mais significante das nossas memórias. Daí eu percebo que lembrar-me do perfume da sua pele como quem decora uma fórmula invencível confirma toda a teoria. Saiba que depois de você eu sei fazer sinestesia sem precisar de caneta, papel e poesia. Aqui está: lambuzo seu cheiro, respiro sua pele, toco seu gosto e escuto sua cor. Mas isso não soa poético?

Já o seu olhar é uma câmera de alta definição que captura raridades, foca minúcias imperceptíveis a olho nu, mil fotografias por segundo do meu corpo, descoberto – pelos seus olhos. Câmera lenta de mim. Nando Reis já dizia em all star, e eu digo que Colombo é você, as Índias sou eu. Você me avistou. As cores da sua íris e seu poder hipnótico. Pigmentos escuros que enrubescem minhas maçãs dantes claras.

Recorro aos seus olhos, discorrendo-os, correndo para dentro deles a fim de não me perder.

Você sabia que seus olhos falam mais do que sua boca? Pois é. Isso é economicamente maravilhoso. Eles são janelas da expressão humana de muitos séculos. São um silêncio gritante. Um vocabulário de verbetes desconhecidos pela sensatez. São passaportes para uma loucura equilibrada, porém emprestada. Porque não me pertencem. Fotografam constantemente o meu rosto - estático, idiota - olhando para a beleza de sua naturalidade. Eu os olho, os aprecio, sem pressa. O brilho que eles têm me lembra um céu muito estrelado, contrastando com a escuridão da noite. Eles também são terras sem orgulho. Vestígios de um futuro bom. Pretérito quase perfeito.

Nada se compara aos seus benditos-profundos-olhos, pois neles se comporta um mundo inteiro, rabiscado ou não. Planeta invisível, misterioso, mas de acordos fechados, sonhos abertos, passos lentos. Os cílios castanhos fazendo sombra para um abrigo que abraça muita necessidade. Mato a fome de amor lá. E por isso quero fazer parte dele a todo custo. Porque aqui fora faz frio, tem dor e desamor e eu preciso me sentir molhada nas águas dos seus olhos. Águas que não são lágrimas de tristeza. São uma intensidade fluindo úmida. Secura é a rápida engrenagem do mundo. 

Ah, você... você... é uma Pasárgada de Bandeira. O vilarejo de Marisa Monte. A pérola rara que nasce numa ostra machucada. É a primeira vez toda vez. A última gota de chuva do sertão. A justiça tão querida. A felicidade clandestina deliciada pelos amantes. Você é o instante em que o meu mundo e o seu se tocam. Um poço de expressão. Um pouco de mim, muito dos deuses.


“Eu quero ser exorcizado pela água benta desse olhar infindo
Que bom é ser fotografado mas pela retina desses olhos lindos...”

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Melhor sugestão



(...) 
Lua que envolve igualmente
os noivos abraçados
e os soldados já frios.

Também como este ar da noite:
sussurrante de silêncios,
cheio de nascimentos e pétalas.

Igual à pedra detida,
sustentando seu demorado destino.
E à nuvem, leve e bela,
vivendo de nunca chegar a ser.

À cigarra, queimando-se em música,
ao camelo que mastiga sua longa solidão,
ao pássaro que procura o fim do mundo,
ao boi que vai com inocência para a morte.

Sede assim qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Não como o resto dos homens.
(Sugestão - Cecília Meireles)


Eu tinha medo de te escrever e depois você sumir, como aconteceu outras vezes com outros caras. Tinha medo de que as palavras te alcançassem pra contar que no começo, pra mim, era apenas uma brincadeira sim, e que nem Peninha mentiu. Ou talvez de que te contassem que o meu sentimento era ínfimo mediante os amores estrambólicos que eu estava acostumada, ao sofrimento matinal junto à ressaca de vinho de uma noite anterior. Tinha medo de que você soubesse que eu sempre preferira os barbudos, que gostavam de ler vorazmente poesia e tinham umas ideias cheirando a cigarro. Aqueles caras tão viajados e risonhos que chegavam a ser melancólicos por suas naturezas híbridas. Mas aí você me veio, vestindo uma praticidade sem tamanho, me enchendo de beijos mais quentes do que o fim de semana descompromissado com o amor. No princípio era o cheiro, depois o sentimento. Veio sem alardes e sem muitas ideias, meio calado, meio neutro e eu que nem curtia tanto esse jeito, fui me encantando com o teu silêncio, com a tua simplicidade de sorrir ingênuo, com os olhos apertados de menino e uma leve crítica penalizando as coisas do mundo. Com uma inteligente abordagem do normal. Uma calma que foi me embalando, foi me afortunando de tranquilidade. E então eu fui gostando do que eu não pensava gostar nunca, dando vez ao sentimento que serpenteou os destinos paralelos aos nossos. Uma estradinha para o nosso interior que foi sendo feita sem planejamento, sem as milhões de expectativas do amor romântico. Os olhos alheios nem puderam se deleitar com o nosso processo, afinal, a tua discrição se fez bem mais elegante do que a mesquinhez dos bobos. Acho que não tínhamos espaço para as fofocas. O produto foi gerado despretensiosamente com esmero. Com isso, nós fomos ensaiando um lugar no coração, ornamentado pelos dias que estamos vivendo sem o ócio de querer um ao outro. Ainda não sei definir o que é isso tudo, essa viagem que transcende a liquidez chata que eu estava fatigada. Parece uma nuvem que vai terminando no meu lado mais iluminado pelo sol, desenhando no pensamento as expressões faciais mais expressivas que já vi na vida. Sonho e acordo de mãos dadas com o carinho sem recompensa. Com um romantismo sem melosidade. O amanhã não existe para nós. Ah, o que eu não sentia há tempos você me devolveu melhor. Mas eu tinha medo de te escrever... e saíram essas frases compondo o elo novo na minha corrente de vida. Porque as nossas entrelinhas se enredam em linhas de uma nova história que já nem é tão nova, poucos sabem disso. Então eu te escrevo... Pedi pra você me ensinar a contar e eu te devolvia umas palavras. Aqui estão.


terça-feira, 13 de agosto de 2013

Desexplicação


"Não estatize meus sentimentos
Pra seu governo,
O meu estado é independente
."
(Renato Russo)



Antes eu queria significar. Dar nome as coisas, desentender um pouco Manoel de Barros. Talvez eu quisesse o subjetivismo lindo de Clarice por meio de uma objetividade leviana. Hoje não tento mais rotular os sentimentos que bailam dentro de mim implorando vez para a desorganização. As sensações sem governo, o trem fora de trilho, o dia amanhecendo quando mais se parece tarde anoitecendo. E tudo vai se confundindo, saindo do terreno do confortável, do bem apresentável aos pais, do bem visto aos olhos da sociedade consumista e simétrica. As performances sentimentais vão se moldando a si próprias, adquirem autonomia dentro da minha teia tecida de amor. A base, o fundamento, aquilo de que uso para me compor. Em versos, em música, em uma pintura que não entendo muito bem. Daí vêm meus livros, me leem, me decifram e me roubam a imagem através de palavras que se orientam para me desorientar. Não ligo mais, nem me importo com aquilo que se quis dizer e não disse. Vejo que cheguei numa fase em que tudo o que mais importa é a profundidade do beijo e não mais a superficialidade do céu que a gente passa tanto tempo almejando. As belezas, os enfeites do romance, os 'eu te amos' soltos, meio que conformados. Tudo isso por água abaixo. Eu cortei relação com essa linearidade de vida. Porque a vida não desenlaça pelas fitas vermelhas e sim pelos nós que insistimos em fazer durante o trajeto. Nós enegrecidos às vezes. A beleza do feio, o amor sujo, "um pano de chão, de linho nobre e pura seda", Renato me entenderia. Pois é, cansei. Resolvo então me entregar às peripécias, aos olhares profundos que calam a boca. Aos abraços inesperados, à tarde de sorvete com palavrões permeando a conversa banal. À companhia para um filme romântico-meloso-idiota, à cachaça que me aguarda ardentemente (aguardente?) na mesinha do quarto no intervalo do filme. Sim, eu a deixei lá, não no bar. Eu só quero chegar mais perto daquilo que não tem rótulo. A bebida, eu, meus sentimentos. Todos sem significados, mas significando demais para mim.

terça-feira, 14 de maio de 2013

O encontro

Pego emprestada a alma trêmula de Frida. Intensa, dolorida, um ser azul que flutua em um mundo cinza. Não vai deixar de ser azul por nada. Só que no meu quarto, no meu mundo que não é o México. Depois me sinto como uma personagem esquisita de Clarice. Daquelas que possuem felicidades clandestinas, repentinas, mas que voltam para o seu canto cativo banhado de devaneios. Tocam-se apenas com um animal de zoológico. E aí, acabo também me espelhando numa personagem alva de García Márquez, muito amada, tímida, mas com olhos misteriosos e sedentos por coisas invisíveis, amores distantes. Sempre a mesma ao longo dos anos, só que diferente a cada dia. Logo após, me sinto eu, me bato de frente. É preciso. A verdade fica hesitando em se mostrar, mas de repente a flor no meio do asfalto de Drummond brota, o eu lírico feminino de Chico desatina, o clamor de Ruiz por algum sentimento que sirva alcança o ouvido. É como se tudo ao redor viesse me buscar para um encontro eu - eu. Como um convite para um filme onde a protagonista revela seus grandes mistérios em ações pequenas. Para uma terapia de auto-conhecimento promíscuo com fala desenfreada. Ou para um encontro num lavatório de roupa suja, ou melhor, de palavra suja, onde tudo será devidamente limpo, exposto, guardado ou usado. Jogado fora também. É como se eu me assistisse no divã, derramando meus problemas para um analista tarado que me olha me tirando a roupa pouco a pouco, saboreando cada curva de conflito. Mas ele só quer me levar a descobrir o que estou fazendo ali. Ele não é tarado, talvez minha consciência seja. Tarada por uma verdade sempre intangível que me espatifa por inteira, se fazendo em pedaços. Porque a verdade é sempre uma incógnita que me veste de personagens alheios, mas me desnuda como o analista chamado tempo. Enquanto isso, vou vivendo de meias-verdades e completas mentiras. Numa casa azul de Frida, no fluxo de consciência de Clarice e na leveza polida de García Márquez.





terça-feira, 23 de abril de 2013

Entre linhas


Seria fácil camuflar sentimentos ou entremeá-los nas linhas todas entre-meladas de orgulho. Poderia esconder até a última gota meu sentimento tolo, imaturo, pendente na corda que fica prestes a se partir com a desaprovação alheia. Poderia ainda fingir palidez sempre que encontrasse a felicidade que se mostra, o vermelho que brota, o suor que denuncia. Mentindo a carapuça, me desnudando por dentro com a sensualidade da poesia. Nos meus gestos faciais poderia demonstrar indiferença num jeito estático de olhar as coisas vis. Mas eu caminho de mãos dadas com os meus sentidos mais finos, metidos de ousadia, quiçá ilusórios. A sensibilidade que me aguça a vida, adoça essas terminações nervosas que dançam numa festa constante, cheia de serpentinas interiores. Sentir é existir. Poder carregar o mundo nos ombros com a força do coração. Além de forte, é bonito. Soa como melodia, melando o dia de cores. Sentir pode ser meloso demais, sim, escorrendo talvez, mas não menos puro. Entregar-se nos versos do poema avulso que me leem com uma lupa, me decifrando toda, me aumentando em palavras, roubando minha melhor interpretação. Ampliação. O mundo ao contrário. Existir é um fardo sem o mergulho sentimental quando a realidade afoga. As emoções são ingênuas meninas de saias rosa, esperando um vento teimoso a sacudi-las do traço acostumado. Teimosia escorre no verbo cheio de intenções pretéritas. E eu fico nas entrelinhas, perdida entre elas, aguardando uma análise sua.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Pensamento colorido

O ritmo do samba antigo me faz sentir saudade do que nunca vivi, reticenciando uma melodia no ouvido que desemboca no lado oculto do meu ser. É arriscado forçar alguma situação, quebrar o elo invisível que se constrói com o pouco que se viveu, apenas para comprovar o que o sonho enfeita nas noites longas. Ouso dizer imoral a tentativa de compreender o caminho ponteado por uma pureza inexplicável do mistério que a gente encontra para enlaçar o óbvio. Porque enigmaticamente a ausência de toques me leva a lugares desconhecidos, me leva a um passo do amor inventado em pleno carnaval, a mil pés da realidade crua. Porque a concretude do mundo sempre abre muitas portas para a abstração que ele abriga pelo não transparecer. Ou não transformar para aparecer? O vazio do ambiente, o choro abafado, o silêncio ensurdecedor, os olhares famintos, as palavras nas entrelinhas, os sentidos lá fora, a fumaça tragada e solta pelo ar do desejo. E é ainda mais misteriosa a ponte que se cria entre o meu pensamento e o fato, tão distantes quanto à insana necessidade de dar gás às tolices esvoaçantes, de alimentar os meus exageros discretos, de enfartar os afetos, remendando (des)pedaços das minhas imaginações bordadas. Pois é mais convincente dizer que tudo tem acontecido nesse silêncio profundo que a gente acaba se afogando, querendo sair vivo e morrendo por não viver. Porque as vontades se concretizam mesmo nessa lacuna que a gente insiste em chamar de pensamento, se alongando em uma forma, num sentido, numa cor, feito arco-íris, digno do encantamento que traz aos olhos de quem o risca com os dedos apontados para o céu, quando lá mesmo ele se desfaz. E talvez seja só isso: o belo que se busca aos tropeços em contraste com a realidade escorregadia. Sensata, mas deixando muito a desejar para a minha mente ritmada pelo samba de raiz, o mesmo que me transporta para um passado jamais experimentado, talvez para as minhas raízes imaginárias.

Silvanna Oliveira


quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

D'Alva, a Estrela da Manhã

Os livros ainda parecem esperar os seus olhos que percorriam as linhas grifadas na leitura matinal. O sofá na sala espia sua volta. Os lugares vazios da cozinha dão espaço à sua ausência pesada, repentina, quase sem jeito, desacostumada. A viagem é demasiada longa para quem a teme daqui, amargamente incerta, mas tão correta a ponto de ferir quem aguarda desde o abraço apertado nos dias festivos; o acerto da previsão de chuva para o dia que pareceria limpo até o fim; as risadas roucas do seu comportamento de mulher guerreira, até o bater de panelas do almoço feito às pressas; as críticas severas rogadas pelo sufoco desesperado do silêncio; a sinceridade borbulhando no bule em suas mãos, engelhadas pelos anos difíceis da década de 40. São estes alguns detalhes que fazem um enorme buraco no cotidiano mal adaptado com a sua partida. Pois é, vovó. Sinto essa falta me assobiando aos ouvidos todos os dias que me levanto e te procuro, mesmo sabendo que a senhora não estará mais em lugar algum nesta casa. É involuntário, afinal, até sabemos como ensinar a vida, sempre evidenciada, lembrada, mas infelizmente não aprendemos sobre a morte por insistência em esquecê-la, ou por medo, quem sabe. No entanto, ainda te procuro porque sei que é nesta busca que encontrarei o lugar certo para a estadia da sua lembrança. Não nos livros, nem na sala, nem na cozinha, porém viva e resplandescente no meu coração, que abomina a ideia do nunca mais. Porque querer a presença física não anulará o seu espírito alegre dos meus gestos diários, nem a espera doce do nosso reencontro em cada memória repartida. 

A estrela D'Alva brilha sempre mais forte no meu céu coberto de saudades. Na fria manhã de terça, a estrela que só é visível da superfície da Terra ao amanhecer me inspira. Vovó Lindalva, minha estrela D'Alva.

Lindalva da Silva - in memoriam 


 15 de janeiro de 2013.